14/01/2020 às 10h57min - Atualizada em 14/01/2020 às 10h57min

Feminismos: Ideologias, Conceitos e Práticas

Texto de Luzia Miranda
Foto: divulgação
 
​A exacerbação das formas de opressão e sujeição das mulheres na sociedade, sob a égide de um sistema patriarcal evidente ao longo da história social mundial, contribuiu para a percepção de níveis de desigualdade a que as mulheres eram submetidas criando- se um movimento que se denominou feminista. Essa percepção confrontava-se comos ideais das doutrinas da democracia liberal que referiam os níveis de igualdade e liberdade do indivíduo como fatores naturais do ser humano. Desde então, criaram-se mecanismos para superar a situação, investigando-se o processo originário de opressão e de formação de uma consciência crítica que colocou em questão as práticas opressoras. Travou-se um segundo estágio transformador de crítica através da organização de movimentos emancipatórios, esboçados em várias fases da História.

O delineamento da “modernidade” capitalista explorou contradições. Ao criar mecanismos de domínio e submissão sobre as mulheres acenou com uma política de igualdade de direitos, lançando-as na luta pela emancipação civil e política e por direitos de igualdade social. Nesse estágio, a luta das mulheres instituiu o feminismo, enquanto um movimento organizado que se estabeleceu com base em uma doutrina (ideologia) e em uma praxis (ação prática). A intenção era subverter a ordem instituída pela cultura ocidental cristã; contestar crenças e padrões mentais arraigados no caráter social, objetivando desenvolver uma nova forma de experiência em que as vivências das mulheres fossem vistas com as diferenças inerentes a esse gênero. Isso favoreceu lutar pela igualdade entre os sexos e contribuiu para um processo re-definidor da presença da mulher na sociedade.

Considerando-se as abordagens sobre a emancipação das mulheres, evidencia-se, na história do movimento feminista, duas fortes tendências que dominaram o feminismo internacional: a liberal burguesa e a socialista.

O feminismo liberal obedece à linhagem burguesa da conquista da igualdade jurídica e política pleiteando o direito do voto como estratégia de luta. Seu desenvolvimento traz origens francesas e inglesas (Olympe de Gouges e Mary Wollstoncraft) radicando-se nos EUA. As sufragistas comportaram-se diferentemente no meio internacional: de um modo geral moderado (as norte-americanas), mas algumas vezes usaram políticas agressivas (como as “sufraggettes” inglesas). Identificando-se com mulheres letradas, de classe média, essa corrente deixou de arguir as contradições básicas dos papéis femininos e das consequências da opressão no mercado de trabalho, acreditando na solução desses problemas via reformas jurídicas. Considerou abranger as mulheres universalmente, sem diferenciações.

O feminismo socialista fez sua síntese na perspectiva de a libertação da mulher ser possível através da independência econômica. A luta por uma sociedade sem classes incidiria na ruptura com as desigualdades de sexo, gênero e raça. Erradicando-se a
exploração da classe operária, a partir da socialização dos meios de produção, a igualdade social e política seria garantida, não sendo necessário arguir as questões específicas da mulher visto que elas estariam diluídas nas questões mais gerais (Cf. Saffioti, 1987; Nye, 1995; Costa & Sardenberg, 1994; Vincent, 1992).

Por mais de um século, o feminismo internacional esteve integrado a essas duas tendências. O sufragismo burguês teve seus momentos de efervescência, enquanto as socialistas feministas fortaleceram as lutas pacifistas na I Guerra Mundial. Nas décadas de 1940 e 1960, por suposto, as sufragistas retornaram ao espaço doméstico e aos PCS (guerra fria). Este fato está ligado à conquista do direito de voto feminino. Entretanto, esse retorno à casa e aos PCS ocasionou quase que uma completa desarticulação das lutas sufragistas. A contestação do final dos anos setenta, ao colocar para discussão certos padrões, práticas e comportamentos, favoreceu o surgimento de um novo feminismo calcado no feminismo liberal norte-americano.

Esta nova concepção reconheceu a opressão que submeteu a sexualidade da mulher à maternidade. (cf. Lobo, 1991; Vincent, 1995). Surgida à margem das duas vertentes da esquerda (a nova e a ortodoxa), esta tendência incorporou-as no processo. A formação dessa nova onda feminista gerou-se anos antes com os debates que as mulheres realizavam analisando sua experiência de vida no cotidiano, nos movimentos e na sociedade. Tratava-se de mulheres norte-americanas e europeias, letradas e de classe social média, engajadas nas lutas políticas, cuja voz era silenciada no âmbito das organizações. Confinadas à esfera
doméstica e subordinadas ao espaço público e profissional, as mulheres deste novofeminismo passaram a questionar os valores afetivos e sexuais entre os seres humanos, pleiteando transformações.

O Século XXI trouxe uma mudança no olhar das discussões anteriores sobre o movimento feminista favorecida pela inclusão de uma versão teórico-crítica das relações sociais de gênero concluindo que muitas mulheres não se sentiam contempladas nessas discussões. Pelo olhar de Valéria Calvi Amaral Silva (2016: 108):

“Embora gênero seja categoria fundamental e definidora de organizações feministas, o conceito de interseccionalidade aponta para as limitações dessa categoria, admitindo outros elementos que, quando considerados, revelam a multiplicidade do sujeito mulher e, com isso, dos feminismos. Isso introduz um problema teórico para os estudos sobre feminismo, a saber, como conceituar o movimento feminista enquanto movimento social a partir da interseccionalidade, que admite como premissa a não-universalidade da categoria “mulher”.

Esse novo percurso dos estudos feministas trouxe o diferencial dos relatos em que outras mulheres que se constituíam na invisibilidade estavam apontando para o movimento anterior como branco, ocidental, cristão, heterossexual, sem chances de ampliar-se para o significado das práticas e políticas necessárias a contemplar os novos sujeitos que o sistema patriarcal contemporâneo teimava em invisibilizar ao criar modelos instituídos.

Dessa forma, as novas discussões se referem a uma plêiade de mulheres que não se sentem ajustadas aos “modelos” em circulação. As latino-americanas pleiteiam o demonstrativo de suas práticas diferenciadas das mulheres ocidentais. As negras apontam um percurso humano histórico marcado pela desumanidade no tratamento recebido quanto à sua raça e ao seu gênero. As mulheres trans tendem a demonstrar que a sexualidade não pode ser medida pela biologia, mas pela dimensão subjetiva de sua vontade e decisão de sentirem desejos despojados da condição hetero.

Finalizo com o questionamento de Sojourner Thruth (1797-1883), escrava negra, dos Estados Unidos, que ao discursar contra a escravidão deslocava a sua reflexão também sobre a condição da mulher: Aint I a Woman? (“não sou eu uma mulher?”) Sojourner Thruth, ativista política e dos direitos humanos passou a ser representada, em 1983, no Michigan Women;s Hall of Fame.
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