13/01/2021 às 11h49min - Atualizada em 13/01/2021 às 11h49min

Uma visão sobre o fazer teatral: 'ser ou não ser, eis a questão'

No Teatro tudo se passa ao mesmo tempo, afinal, é um jogo entre público e atores

Fernando Matos

Fernando Matos

Fernando Matos é ator, autor, diretor teatral e professor. Sua paixão por teatro surgiu desde a infância.

Fernando Matos
Em grego, a palavra persona significa máscara; vêm daí palavras como personalidade e personagem. (Foto: Arquivo Pessoal do colunista)
      
Muitas pessoas, pelos mais diversos motivos, não tiveram ainda a oportunidade de ir ao Teatro para assistir a um espetáculo. Apesar disso, é certo que, de um modo ou de outro, todos entendem um pouco de Teatro, seja por peças feitas ou assistidas na escola, por entrevistas em que atores falam dessa arte ou de seu trabalho como intérpretes, ou ainda, por uma certa aproximação da linguagem teatral como aquela dos filmes ou das telenovelas.

A essência do Teatro, que compreende o autor, o texto e o público, acontece no chamado fenômeno teatral, ou seja, o espetáculo. Por sua vez, o espetáculo é uma arte do aqui-agora, porque ele só acontece com a presença física do ator e do público. Diferentemente de outras formas artísticas ligadas às chamadas artes da representação como, por exemplo, aquelas praticadas por atores no cinema e na televisão.

No Teatro, quando atores e público estão juntos em seus espaços característicos – o palco e a platéia – diz-se que ambos participam de uma experiência artística ou estética. Essa experiência estética, por suas características particulares, assume uma forma ritualística. O Teatro, pela relação atores-público, representa uma espécie de cerimônia simbólica. Portanto, o público e os atores estão separados por funções diferentes, mas ligados pela mesma experiência, que é o espetáculo.

No Teatro tudo se passa ao mesmo tempo. Quando um ator erra ou esquece o texto, quando um refletor de luz não funciona, quando um ator tem um ‘ataque de riso’ imprevisto, quando a trilha sonora não entra no momento certo, não há como corrigir o imprevisto. Não é possível voltar atrás. Nesses momentos, cabe ao ator improvisar e assumir aquilo que não estava previsto ou disfarçar e fingir que nada aconteceu. No primeiro caso, quando se improvisa, é bastante comum acontecerem momentos memoráveis de cumplicidade na parceria atores/público. Ao aproveitar-se do erro, o ator pode brincar e estimular de modo mais efetivo a participação do público. Afinal, Teatro é um jogo entre o público e os atores.

No espetáculo teatral, quando um problema aparece e o ator assume o “erro”, o público normalmente compreende e incentiva ainda mais os atores com palmas. Quando o espetáculo é bom e tudo funciona, o público se entrega a ele. Há uma atmosfera de  respeito e silêncio, de total aceitação. É como se o público e os atores “respirassem juntos”.

O Teatro, na condição de linguagem sistematizada, iniciou-se na Grécia Antiga (por volta do séc. VIII a.C.), como decorrência de cerimônias ou rituais religiosos em homenagem ao deus Dioniso (ou Bacco, para os romanos), que teria ensinado a humanidade a cultivar uvas e a fazer vinho.  O ritual em homenagem ao deus Dioniso chamava-se “Ritual de Fertilidade” e estruturava-se em uma procissão, com vários seguidores, cujo símbolo era o phallos (pênis). Desse modo, o deus – hoje considerado o patrono do Teatro – era tido como fertilizador das vinhas, da terra e da humanidade e, como conseqüência, dos prazeres carnais. 

Nesses rituais, personificar o deus (“estar em seu lugar”), para homenageá-lo correspondia à aceitação do princípio do fingimento, que caracteriza até hoje a base do trabalho do ator. Assim, o princípio de “aceitar” o ator como sendo o personagem é uma “convenção de natureza estética”.

Quando se assiste a um espetáculo teatral, alguma coisa nele, que nem sempre se consegue  explicar, pode provocar as mais diferentes reações. Palavras não compreendidas, gestos emocionantes, movimentos inexplicáveis, pessoas estranhas, imagens poéticas e o contrário disso tudo podem mexer com as pessoas.

A apreciação estética compreende uma reflexão sobre os sentimentos provocados pelo belo artístico. O poeta português Fernando Pessoa escreveu, na década de 30, um de seus poemas mais famosos, chamado “Autopsicografia”, cujos versos, a respeito de fingimento, dizem: O poeta é um fingidor. Finge tão completamente que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente.

Sabe-se que um determinado ator não é o personagem que apresenta ou aparenta ser; entretanto, dependendo do talento ou da capacidade para metamorfosear-se neste personagem, o ator pode levar o espectador a acreditar, a torcer, a ter raiva, pena, a refletir, enfim, a identificar-se com ele.

No Teatro, diz-se ainda que essa identificação com o personagem – que também pode ser chamada de empatia – tanto pode ser emocional quanto racional ou, como acontece normalmente, compreender os dois tipos de aproximação.

Em grego, a palavra persona significa máscara; vêm daí palavras como personalidade e personagem. Desse modo, o personagem corresponde a uma máscara, seja no sentido de mentalidade ou conjunto de características comportamentais de alguém. É por isso que o símbolo do teatro é representado pelas duas máscaras: a da tragédia e a da comédia. Nem verdade, nem mentira, apenas verdade simbólica.

Que estranho e desconhecido procedimento é esse que, nas artes da representação, faz com que se acredite em alguma coisa que se sabe não verdadeira? 
O que faz com que se torça por esta ou aquela personagem a ponto de sentir suas dores, receios, raivas, inquietações?
Que espécie de emoção é essa que nos induz a esquecermos de nós mesmos para emocionalmente nos colocarmos no lugar dos outros?
Por que se torce, sofre, chora, tem raiva, quer vingança, se emociona pelos personagens que sabemos não serem reais?
O que faz com que se “sinta de verdade” – emocional e racionalmente – os sentimentos dos personagens? Que coisa é essa?

Sabe-se que a arte da representação não mostra a “realidade verdadeira”, mas a imita e, em boa parte das vezes, com tanta semelhança que se confunde o verdadeiro com o imaginário. A “confusão” entre realidade e ficção acontece porque em arte impera o conceito de verdade simbólica ou realidade simbólica. Ou seja, sabe-se que não se trata de uma verdade, mas aceita-se como se representada o fosse. Ou melhor, aceita-se a “verdade” a partir de uma convenção. Nessa “realidade simbólica”, fundamentada no fingir, concentra-se talvez a grande força da arte teatral: o ser humano precisa ser mais do que ele mesmo, precisa superar-se a partir de histórias e trajetórias de outros seres, precisa identificar-se com o personagem-modelo, talvez até para entender-se melhor, conhecer-se melhor, colocar-se no lugar do outro, ser aceito.
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